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Bolodório – Cultura como Cultivo, ou: é tempo de semear…

Por em em 29/05/2025 Atualizado em 29/05/2025 15:19

Este não é um texto que pretende responder ou esclarecer algo. Pelo contrário, ele se lança no movimento das perguntas, convidando o leitor a pensar, dialogar e produzir novos significados, escolhendo a dúvida em vez da certeza. Longe do academicismo que afirma que cultura é cultivo, proponho pensarmos juntos: e se a cultura fosse como cultivo? Quais outros caminhos e olhares isso abriria sobre o que estamos semeando socialmente e desejamos ver florescer?

Foto: Karina Lysenko

Durante muito tempo, a grande mídia definiu os temas das conversas sociais, mas hoje o solo mudou e o trator virou algoritmo. As redes sociais se tornaram o principal espaço onde cultivamos nossas ideias e subjetividades. De um lado, há o caos revelador de plataformas como Instagram, TikTok e Twitter, com temas que vão de bebês reborns a escândalos de celebridades. De outro, o LinkedIn, apelidado por seus usuários de “LinkeDisney”,  performa uma lógica neoliberal, onde se cultua a produtividade como salvação espiritual e a inteligência artificial como fetiche contraditório.

Pois bem. Se isso é o que está nas redes e na boca do povo, o que foge a elas?

Certamente que a morte de um trabalhador esmagado por uma porta de metrô em São Paulo. Os índices altíssimos de feminicídio em solo brasileiro. As políticas xenofóbicas trumpistas que voltam a ganhar força nos Estados Unidos. O genocídio em Gaza. O descaso da prefeitura de Salvador com a população de rua, principalmente nesses meses chuvosos, onde a cidade vira um caos e não há abrigo para ninguém.

Por que falamos tanto do look da Virgínia na CPI das Bets e tão pouco sobre o império que ela constroi, silenciosamente, entre publis e jogos de azar? Que projeto de sociedade é esse em que a fofoca é manchete e a política se torna ruído? O que está sendo priorizado como pauta? Quem pauta o que é digno de ser cultivado?

E mais: estamos conscientes do que andamos regando — com nosso tempo, atenção e desejo — nas redes, nas rodas, nas ruas?

Essas são perguntas que não pretendo responder. Mas é delas que nasce este texto. E também é delas que nasce a Roda Cultural, um site — ou, quem sabe, um caminho — que se propõe a tecer novos assuntos, olhares, novos modos de falar sobre o que nos constitui. Cultura, aqui, não é uma ideia engessada em academias e arquivos mortos. É movimento. É o que atravessa.

E falando de Salvador, falando da Bahia, é impossível não reconhecer que, quando o assunto é arte, ela pulsa, e pulsa alto.

As salas de cinema estão com programações vibrantes. Do nacional Homem com H ao baianíssimo Café Pépi Limão. Os teatros, como o da Aliança Francesa, exibe o clássico Casa de Bonecas, de Ibsen, enquanto o Martim Gonçalves apresentou, em maio, o impactante A Gota D’Água. Os bares e casas de shows não deixam por menos: noites de samba, chorinho, artistas autorais, festas temáticas que vão do brega brasileiro ao funk norte-americano.

As oficinas se multiplicam: contação de histórias n’A Casa Sankofa, debates sobre a representação da saúde mental a partir do cinema, no Cinema com Teoria, práticas de Tai Chi Chuan, ateliês de escrita e maquiagem drag no Ecos de Quimera.

Por que falar disso? Por que insistir?

A resposta é complexa, mas simples: Porque ainda vale pensar, analisar, debater essas questões. Porque a arte é, talvez, o maior cultivo que a humanidade faz sobre si mesma. É onde memórias brotam e identidades criam raízes. A arte é espelho e semente, registro e reinvenção.

E quando falamos de arte latino-americana, brasileira, baiana, soteropolitana, estamos falando também de um enfrentamento direto à hegemonia da narrativa europeia. Falamos sobre o ato de “narrar sobre nós a partir de nós”, com a nossa língua, nossos corpos, nossos traumas, delírios e celebrações. O protagonismo que nos foi negado por séculos começa a ser reconquistado em cada espetáculo de rua, em cada curta independente, em cada show improvisado, em cada sarau de bairro.

A cultura está viva e é justamente porque está viva que devemos cultivar com cuidado. Questionar com coragem. Falar com ousadia. A Roda Cultural nasce para isso. E esta coluna, de nome Bolodório, se propõe ao mesmo: ser espaço de escuta, de fala, de inquietação.

Que possamos, juntos, cultivar outras palavras. Outras vivências. Outros pertencimentos.

Porque a cultura, quando entendida como cultivo, nos convida a pensar não só o que estamos colhendo, mas sobretudo o que escolhemos plantar.

Mariana Kaoos

colunista

Jornalista e mestra em Cultura e Sociedade. Com escrita entre o poético e o crítico, explora o papel da cultura na formação da subjetividade e nas experiências do cotidiano. Em seus textos, investiga as nuances da existência através das artes, revelando afetos, fissuras e contradições do ser contemporâneo.

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