Cinema

“Ibejis”: curta-metragem celebra a fé, a infância e a tradição do caruru na Chapada Diamantina

Por em 5/11/2025 Atualizado em 06/11/2025 15:54

Há 11 anos, Dona Menina prepara o caruru de Cosme e Damião em sua comunidade, na Chapada Diamantina, interior da Bahia. O gesto cumpre a promessa feita aos santos pelo nascimento de seus netos gêmeos, Pedro e Joana.

Essa é a sinopse do curta-metragem Ibejis (2024), escrito e dirigido pela jovem cineasta Kallyane Nery, de 22 anos. O filme homenageia não apenas os santos meninos, mas também as famílias do interior, retratando o afeto e o cuidado presentes no cotidiano da comunidade em torno de Dona Menina, papel interpretado por Laurita Neves de Oliveira, avó da diretora.

Dia de Cosme e Damião: Conheça a origem da data.

Foto: Mamirawá

A origem de Ibejis e o olhar da diretora

Kallyane é moradora de Seabra-BA, na Chapada Diamantina, e ingressou na faculdade de Cinema da UFRB, em Cachoeira-BA, no ano de 2023.

Inspirada por um sonho que teve com brincadeiras da infância ao lado dos primos e da avó, a jovem decidiu criar uma história sobre crianças. Ao mesmo tempo, seu interesse pelo caruru de Cosme e Damião despertou curiosidade sobre os bastidores da preparação da comida e das famílias envolvidas na tradição.

“Eu sempre fui para as filas para poder pegar o caruru de Cosme e Damião, e um dia eu me perguntei: ‘Gente, como será que acontece? Quais são os bastidores por trás da fila do caruru?’ Porque eu só ia para a fila, pegava a vasilha com o caruru e saía para comer. Não participava de reza, não participava de nada. Então, eu nunca entendi, de fato, como acontecia essa preparação das famílias que distribuem o caruru, e fiquei curiosa para entender. A partir disso, eu falei: ‘Eu preciso criar, de forma fictícia, essa história. Eu preciso responder às minhas próprias perguntas com o filme.’”

Os Ibejis e o simbolismo ancestral

Os Ibejis, ou Ibeji, são os orixás gêmeos da tradição iorubá que simbolizam a infância, a alegria e a proteção das crianças. Com o processo de sincretismo religioso no Brasil, essas divindades foram associadas aos santos católicos Cosme e Damião.

No catolicismo, a celebração ocorre em 26 de setembro, enquanto no candomblé, na umbanda e no jarê (religião de matriz africana presente na Chapada Diamantina) a homenagem é feita no dia seguinte. Em ambas as datas, o momento é marcado pelo tradicional caruru e pela distribuição de doces entre crianças e convidados, como gesto de fé e gratidão.

Apesar da data em que se passa, a diretora faz questão de destacar que Ibejis não é um filme religioso, mas uma obra que aborda cultura e tradição a partir da vivência de uma família e de uma comunidade.

Segundo ela, o curta ultrapassa o campo da religião ao retratar os costumes e os modos de vida, valorizando as raízes culturais que moldaram a celebração dos santos e dos orixás gêmeos.

A escolha do título Ibejis é, para a cineasta, uma homenagem à ancestralidade africana e à origem iorubá dessa prática.

“Escolher o nome Ibejis para o filme, de fato, é uma homenagem para que a gente lembre de onde veio. O caruru veio de terras iorubás, veio da África para cá. Então, temos que lembrar da identidade, porque estamos falando de uma cultura do interior que chegou de uma forma, mas que também é importante saber onde nasce. Falar sobre o caruru de Cosme e Damião, muito especificamente na Chapada Diamantina, que, apesar de ser algo que é patrimônio cultural e imaterial da Bahia, era dar palco às histórias que não são contadas do meu povo.”

Embora não tenha crescido vivenciando diretamente a tradição do caruru de Cosme e Damião, Kallyane descobriu, durante o processo de criação, que sua bisavó preparava o caruru para a comunidade. Essa memória familiar despertou nela a vontade de revisitar suas origens. A passagem por Cachoeira, no Recôncavo Baiano, também foi fundamental para aprofundar essa conexão e compreender melhor a celebração.

O interior colorido da Chapada Diamantina

O visual e a narrativa de Ibejis buscam retratar o interior da Bahia de forma vibrante e autêntica, afastando-se dos estereótipos de pobreza e aridez frequentemente associados ao sertão. Kallyane Nery destaca que o objetivo era mostrar um interior colorido, próspero e cheio de vida, refletindo a riqueza cultural da Chapada Diamantina. O filme foi construído a partir de referências do cotidiano, bem como de memórias pessoais e coletivas da equipe. A direção de arte, assinada por Adriana Teles, utilizou a própria casa da avó da diretora, adaptando objetos, tecidos e cores para compor a estética da obra.

“Eu queria um filme muito colorido, que trouxesse a Chapada Diamantina, mas que não trouxesse a ideia do interior pobre, sabe? Do sertão seco, sofrido. Eu queria que fosse realmente o interior que a gente vive, que é um interior colorido, próspero e de fartura. Então, as imagens começam a nascer muito nesse sentido. A gente tem várias referências: por exemplo, o altar vem muito da referência do jarê, porque essa religião existe somente aqui na Chapada Diamantina. A mesma coisa com as crianças: a gente quis trazer essa energia das crianças, mas de uma forma que não fosse caricata, que fosse muito nossa e original. Então, as coisas foram se moldando muito nas memórias de todo mundo.”

Foto: Mamirawá

Ibejis e toda a narrativa são inspirados nas memórias afetivas da diretora. A personagem principal, é interpretada por sua própria avó, e grande parte do elenco é formado por parentes e amigos próximos da comunidade. As brincadeiras, cantigas e até pequenos gestos retratados na obra foram retirados das vivências de Kallyane. Para ela, o curta é uma homenagem à sua família, ao mesmo tempo em que causa identificação em diferentes públicos ao revisitar cenas cotidianas e nostálgicas, como brincadeiras de rua, encontros familiares e o preparo de comidas típicas.

A criação dos gêmeos: Pedro e Joana

Ao falar sobre os personagens Pedro e Joana, interpretados por Victor Alves e Victória Alves, Kallyane Nery revela que, desde o início, decidiu que os irmãos seriam gêmeos, para fazer alusão aos Ibejis e também a Cosme e Damião, mesmo sem saber se seriam meninos ou meninas.

A história da mãe das crianças permanece no “off” do filme, deixando espaço para o mistério: “Talvez ela tenha morrido no parto? A promessa de Dona Menina foi para as crianças continuarem vivas; nós não sabemos se essa história da mãe existe de fato, e sim que a avó dos meninos fez a promessa por eles”, diz a autora.

Em 2024, Kallyane trancou sua faculdade de Cinema e Audiovisual em Cachoeira e retornou a Seabra para realizar sua iniciação no Candomblé. O processo de Feitura de Santo foi feito junto com sua irmã de barco, Larissa, e foi nesse período que nasceram os erês Joaninha e Pombinho.

Ao mesmo tempo, Kallyane se manteve profundamente imersa no roteiro de Ibejis, refletindo sobre as imagens e conceitos que queria para o filme. Joaninha e Pombinho serviram de inspiração para os personagens Pedro e Joana: Joana é baseada no erê da irmã de Kallyane, Joaninha, enquanto Pedro se inspira em Pombinho, seu próprio erê, com personalidades e cores, de acordo com a diretora, que refletem nos personagens.

A fé e a memória de Dona Laurita

Moradora da Lagoa Seca, povoado de Iraquara, na Chapada Diamantina, Laurita Neves de Oliveira foi a inspiração e também quem deu vida à personagem Dona Menina no curta-metragem. Nascida e criada na zona rural, Dona Laurita construiu sua história com fé, sendo devota de São Cosme e São Damião desde a infância.

Ela recorda com carinho os tempos em que participava das rezas e ajudava na preparação das mesas de caruru organizadas por sua tia, tradição que mais tarde foi mantida, durante um tempo, por suas primas e sua irmã, reunindo a comunidade em momentos de devoção e alegria.

Foto: @ma_mirawa

“Era muito importante para nós, crianças, o dia da mesa de Cosme, pois era a maior alegria da nossa vida sentar à mesa para comer o caruru. Dois dias antes, a gente ia para a casa das pessoas que rezavam, matar a galinha e arrumar as comidas, e, no outro dia cedo, a gente ia cozinhar. Na primeira mesa, reuniam-se sete crianças, e depois vinham as outras mesas”, disse Neves.

O professor e babalorixá Babá George, em entrevista ao Brasil de Fato, diz que o caruru, como prática religiosa, se consolidou com as expressões religiosas sincréticas. Segundo ele, pessoas do candomblé, católicas ou mesmo aquelas sem ligação direta com essas tradições ofertavam o prato no mês de setembro, seja em devoção a Ibeji, Cosme e Damião, Crispim e Crispiniano, ou Doum e Alabá, ou como forma de agradecimento por um parto difícil ou pelo nascimento de gêmeos, o que explica a prática de sete crianças à mesa citada por Laurita Neves.

Foto: Clériston Nery

Tradição, fé e resistência

Apesar de reconhecer que a tradição tem perdido força, Laurita destaca que ainda há quem mantenha viva a devoção. Ela conta que tem uma “comadre” que continua realizando a mesa de Cosme e Damião todos os anos. No ano passado, participou da celebração, na qual presenciou a reza do terço e a oferta feita aos santos gêmeos. Para ela, manter essa prática é também uma forma de preservar a fé, que ela acredita ser fonte de cura e proteção.

“Eu entrego nas mãos de Deus e nas mãos de Cosme e Damião. Eles me curaram, eu sei que me curam, e até hoje sei que muitos não querem mais fazer a reza, dizem que isso não existe, mas existe sim. Eu tenho muita fé em Cosme e Damião, que são os médicos dos nossos médicos”, afirma com convicção.

O relato de Dona Laurita revela como a tradição de Cosme e Damião segue viva na memória das pessoas.

Mesmo diante das mudanças do tempo e da diminuição das celebrações, ela reconhece o costume como parte essencial de sua história e da comunidade.

Sua participação no filme fortalece esse laço e ajuda a transmitir às novas gerações o valor simbólico do caruru e das festas dedicadas aos santos gêmeos. Ibejis se firma como uma celebração da infância e do território.

Reconhecimento e circulação do filme

Colorido, sensível e profundamente ligado às memórias da Chapada Diamantina, o filme nasce do cotidiano e das referências culturais da região e resgata tradições sem se prender ao óbvio.

Ibejis vem passando por diversos festivais na Bahia e foi premiado recentemente na “V Mostra de Cinema Negro de São Félix (BA)”. Para Kallyane, esse é o maior retorno que o filme pode ter: ver as pessoas se enxergando na tela.

O filme pode ser assistido temporariamente e de forma gratuita na plataforma Bombozila. A equipe pretende disponibilizá-lo no YouTube, mas, por enquanto, a obra está circulando em alguns festivais. Como parte desses eventos exigem que o curta-metragem não esteja disponível de maneira aberta ao público, o grupo decidiu aguardar o fim desse ciclo, previsto para se encerrar até o final de 2025.

Ficha técnica

Roteiro e Direção
Kallyane Nery

Produção Executiva
Vitor dos Santos

Direção de Produção
Iago Aquino

Elenco
Laurita Neves é Dona Menina
Victória Alves é Joana
Victor Alves é Pedro
Biris da Chapada é Marcos
Dalviane dos Santos é Filha de Dona Menina
Gabriel dos Santos é Filho de Dona Menina
Geisa dos Santos é Filha de Dona Menina
Tassiano Araújo é Sebastião
Clarissy da Silva é Prima de Pedro e Joana
Ryan Felipe Santos é Primo de Pedro e Joana
Guilherme Alves é Amigo de Pedro e Joana

Participações Especiais
Terno de Reis de Tonho de Lau da Cajazeira
Nerisvaldo Sobrinho
Pecebes Rabelo
Piau
Comunidade de Lagoa seca, Iraquara

Produção
Iago Aquino
Kallyane Nery
Vitor dos Santos

Assistente de Produção
Júlio Teles

Diretora de Fotografia
Bárbara Lima

Assistente de Fotografia
Raiane Jardim

Diretor de Som
Thiago Machado

Técnico de Som
Bruno Souza

Diretora de Arte
Driamantina

Assistente de Arte
Danielly Nery

Preparadora de Elenco
Maria Clara Barbosa

Still
Mamirawá

Montador
João Ernandes

Colorização
João Ernandes

Mixagem
Thiago Machado

Produção Local
Nerinha Nery
Douglas Nery

Assessora de Comunicação
Ananda Azevedo

Designer
Raul Lima

Making off & Bastidores
Aliel Barboza

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Victor Ribeiro

colunista

Jornalista da Chapada Diamantina, formado pela UFRB. Editor de podcast, fã de rap sujo e de expressões culturais periféricas e alternativas. Seu passatempo favorito é refletir sobre as transformações do pagode baiano.

Victor Ribeiro escreve sobre CinemaNotícias